Introdução
O mundo empresarial ficou chocado com os fatos ocorridos ao CEO da aliança Renault-Nissan-Mitsubishi: sua detenção em Tóquio e demissão do Conselho de Administração da Nissan.
Em nota a Nissan informou que, em investigação interna, encontrou várias irregularidades como subnotificar seus rendimentos às autoridades locais e o uso pessoal de ativos da companhia.
A promotoria japonesa acusa Carlos Ghosn de evasão fiscal nos últimos quatro anos, sendo que a prisão ocorreu de forma dramática: digna de filmes de ação.
Pairam sobre estes fatos muitas dúvidas referentes a esta ação cinematográfica ocorrida com um expressivo executivo mundial de uma aliança de empresas globais.
Breve Histórico
Vindo de uma carreira de sucesso na Michelin (Diretor Executivo USA), Carlos Ghosn foi contratado pela Renault para se o Vice-Presidente Executivo em 1996.
Durante este período a empresa passava por uma grande crise financeira. Ghosn exerceu sua liderança na restruturação e na recuperação da empresa, realizando uma serie de cortes de custos. Isso o levou a ter o apelido de Le Cost Killer.
Em 1999 foi o principal responsável pela aliança entre Renault e Nissan. A empresa japonesa passava por uma grave crise, a beira da falência, e a Renault desejava ter uma maior participação internacional.
Ghosn novamente atuou de forma decisiva na recuperação da Nissan. A revista Forbes o nomeou como o Empresário do Ano na Ásia em 2002.
Em 2005 tornou-se CEO da Aliança Renault-Nissan. Na sua gestão o grupo adquiriu participação na Mitsubishi (34%). Em 2017, as três montadoras se tornaram um das maiores fabricantes de carros do mundo.
Ghosn sempre foi visto como o responsável pela gestão e com grande poder no funcionamento da aliança. Ele concentrou muito poder na aliança e obteve um remuneração considerada por muitos excessiva.
O que aconteceu para ocorrer este dramático evento? Governança não adequada, choque de culturas ou um golpe de estado pelo poder?
Modelos Governança: França e Japão
Os modelos de governança, conforme região e cultura, são muito bem definidos no livro “Governança Corporativa”, dos autores José Paschoal Rossetti e Adriana Andrade. Os autores definem cinco grandes modelos de governança: Anglo-Saxão, Alemão, Latino-Europeu e Japonês.
Estes modelos são caracterizados por 10 aspectos da governança bem definidos. Na tabela abaixo são apresentados os aspectos e as características dos modelos latino-europeu e japonês.
Tabela 1: Modelos de governança
Comparando os modelos latino-europeu (francês) com o japonês verificam-se as seguintes diferenças mais significativas: Financiamento:
• Latino-Europeu Indefinido, focado em capital próprio (familiar).
• Japonês: Mercado de capitais, participação cruzada (bancos).
Proteção legal aos minoritário:
• Latino-Europeu: Baixa.
• Japonês: Alta pelas participações cruzadas.
Conselho de Administração:
• Latino-Europeu: Consultivo e pressão por resultados.
• Japonês: Atuante com foco na operação. Decisões por consenso.
A Renault tem uma estrutura acionária com 63% de acionistas individuas na bolsa de Paris (com relativa liquidez), 15,1% do governo francês (maior acionista individual) e 15% da Nissan, mas sem direito a voto.
A Nissan possui uma estrutura onde a Renault tem a maior participação (43,4%), instituições japonesas têm a segunda maior participação (20%) e somente 16% estão com investidores individuais na bolsa de Tóquio (pouca liquidez). O governo japonês tem uma participação de apenas 5%.
Estes modelos de governança geram focos em diferentes stakeholders.
Enquanto a Renault tem o principal foco nos acionistas majoritários: governo francês. A Nissan tem uma cultura igualitária com todos os acionistas (majoritários e minoritários), incluindo a Renault.
Estas diferença geram conflitos de agências diferentes: Renault tem um conflito de majoritários-minoritários. Nissan tem um baixo conflito de credores-acionistas, apenas enfatizado pela participação estrangeira.
Além disso, o ponto que mais chama mais a atenção é como está estruturada o modelo de governança da aliança. Ghosn concentrava em suas mão as seguintes funções:
• Presidente do conselho de administração da Renault
• Presidente executivo da Renault
• Presidente do conselho de administração da Nissan
• Presidente do conselho de administração da Mitsubishi
• Presidente executivo da aliança entre as três montadoras.
Verifica-se aqui um claro conflito de interesses. Regras de governança corporativa desaconselham que o presidente executivo seja também presidente do conselho de administração.
A diretoria executiva atua na gestão e administração das operações da empresa, tomando decisões relevantes para executar o planejamento da companhia. Deve ainda reportar os resultados ao conselho de administração para supervisão.
O conselho de administração não participa da gestão do dia a dia da empresa. Ele é o representante dos acionistas, sendo a instancia máxima de decisão da empresa. Tem a função de supervisionar a performance da empresa, diretoria e seu presidente. Com a o poder de eleger e destituir a diretoria e o presidente.
Se a mesma pessoa é o presidente destas duas instâncias a função do conselho de administração fica totalmente comprometida.
Culturas
Ao considerando as culturas dos diversos países autor Richard Lewis do livro "When Cultures Collide” apresenta um conceito de culturas modelado de forma triangular.
Nos vértices são designadas as culturas Ativa Linear, Multi Ativa e Reativa. Conforme as características os países, estes são posicionados ao longo dos lados do triangulo.
Figura 1. Triangulo cultural
Segundo este modelo os japoneses possuem uma cultura Reativa. Já os franceses possuem uma cultura um pouco mais Multi Ativa do que para Ativa Linear.
Estas culturas apresentam as seguintes característica.
Comparando as culturas francesa (FR) e japonês (JP) verificam-se as seguintes diferenças mais significativas:
• Comunicação – FR: fala a metade ou a maior parte do tempo; JP: ouve a maior parte do tempo.
• Relacionamento – FR: educado e direto; JP: educado e indireto.
• Sentimento – FR: demonstra ou esconde parcialmente; JP: sempre esconde.
• Debates – FR: confronta (com lógica ou emoção); JP: nunca confronta.
• Negociações – FR: verdade antes da diplomacia; JP: diplomacia antes da verdade.
No inicio da aliança, devido à interesses complementares, as diferenças culturais foram enfrentadas de forma conciliatória.
Contudo, ao passar dos anos elas foram se acentuando devido a convivência empresarial e as mudanças do cenário.
A participação francesa nas decisões da aliança foi sempre maior, não apenas pela participação acionária, mas também pela cultura: Forma de comunicação (fala-ouve), relacionamento (direto-indireto), debates (confronta-não confronta) e negociações (verdade sobre diplomacia-diplomacia sobre verdade).
Estas diferenças contribuíram para faltas de comunicação mais transparente para alinhar os objetivos da aliança.
Golpe de estado (Coup d'etat)
Em 1999 após uma grave crise e ser alvo de aquisição de várias empresas, a Nissan formou uma aliança com a Renault. Esta aliança foi concebida também com o conceito de manter as duas empresas independentes.
Contudo, a Renault possui direito a voto pleno na Nissan, sendo que esta última não tem direito. Ao longo do tempo esta estrutura foi deixando a Nissan muito desconfortável.
Em 2015, Ghosn declarou que planejava uma fusão entre a Renault e a Nissan, mas antes era necessário rever a estrutura de capital. Fato que não ocorreu pois desagradavam tanto os stakeholders franceses quanto os japoneses.
Conforme as intenções iniciais de independência das companhias, os executivos da Nissan sempre foram contra esta fusão.
Depois que o governo francês aumentou sua participação na Renault, a Nissan ficou ainda mais descontente com a aliança e com a gestão Ghosn.
Além disso, o governo francês (maior acionista da Renault), na gestão do presidente francês Emmanuel Macron, também estava incomodado com a gestão da Renault. Isso devido a remuneração de Gosh, considerada excessiva.
Outro fator importante foi a alteração das forças da aliança. No momento inicial a Renault era lucrativa e a Nissan estava com serias dificuldades.
Nos últimos anos a Nissan passou a ser bem mais lucrativa, permitindo a sobrevivência da Renault. Segundo o jornal Libération, em 2017 a Nissan faturou 100 bilhões, enquanto Renault faturou 58 bilhões.
Estes fatores forma incrementando a insatisfação da Nissan.
Conclusões
Conforme pode-se verificar, não existe um único fator responsável pelo evento ocorrido. Utilizando as informações publicas, podemos ter algumas conclusões.
Verifica-se que a diferença cultura foi um dos fatores. Devido a diferença das formas de comunicação foi gerado um distanciamento dos gestores das empresas, comprometendo o alinhamento da aliança.
Além disso a inversão das performances junto ao mercado automotivo, com o crescimento e melhoria da Nissan. Superando em muito os resultados da Renault, levando a um maior questionamento da estrutura acionária da aliança.
Ghosn sempre foi o principal gestor tanto da Renault como da aliança. Com um estilo de gestão agressiva, sempre eliminando sucessores, incluindo os da Nissan. Além disso, presidindo a diretoria executiva e os conselhos da aliança e de seus membros.
Desta forma, sempre teve o aval para executar o seu estilo de gestão sem uma supervisão. Obteve assim uma grande autonomia e liberdade de ação, decisões e atitudes bastante questionáveis aos olhos das melhores práticas de governança, ética e de integridade.
Além de concentrar muito poder, também incrementou seus honorário de forma a desagradar vários stakeholders.
Estes fatores levaram ao um golpe de estado na Nissan, “utilizando” uma das ferramentas da governança o “canal de denuncias”.
A forma cinematográfica do golpe ocorreu conforme a cultura japonesa: sem enfrentamentos diretos, conflitos, seguindo princípios, paciência e apenas fazendo denuncias a promotoria japonesa, com a posterior demissão do conselho.
A reação do governo francês foi de extrema preocupação, com uma grande atenção e acompanhamento da estabilidade da aliança e da Renault.
A reação da Renault foi tímida e gera algumas incertezas. Foi apontado um presidente interino temporário. O conselho de administração pediu a Nissan todas a informações referentes ao caso.
A Mitsubishi reagiu de forma similar à Nissan, também demitiu Ghosn do conselho de administração.
Agora existem grandes dúvidas em relação ao relacionamento dos membros da aliança e ao futuro da desta.